segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Tenda das Nações


A Tenda das Nações



A história do local começa com o avô dos irmãos Daoud, Amal e Daher, que em 1916 comprou a terra 7 km ao Sudoeste de Belém. Ele registrou toda área que comprou com as autoridades otomanas, diferentemente da maioria dos palestinos que não registravam sua terra para não pagar impostos. A família cristã continuou vivendo na terra, utilizando as cavernas da área como abrigo, local de descanso, armazém e até domicílio. No ano de 1991, as autoridades israelenses declaram essa terra como "terra estatal". Uma batalha legal começou desde então. Foram 10 anos nas cortes militares israelenses, mais dez anos na Suprema Corte de Israel, onde permanece o processo até os dias de hoje. 

Bloqueio na estrada que leva para Tenda das nações
 As exigências foram constantes por parte das autoridades israelenses. Pediram mapas, fotos aéreas, documentos. Uma vez pediram testemunhas, pois consideravam os documentos insuficientes. Na vila mais próxima, Nahalin, há pessoas que trabalhavam a muito tempo para família dona da terra. Alugaram um ônibus, levaram todos para corte em Beit El, na região de Ramallah, porem não tinham permissão para passar por Jerusalém, tendo que dar a volta pelo deserto, passando por Jericó, o que demorou 2 horas devido a todos os postos de controle no caminho. Quando chegaram na corte, esperaram algumas horas para depois ser dito para eles que não havia mais necessidade de testemunhas. Solicitaram então que trouxessem o documento original de 1916. A família dona da terra teve de enviar o advogado para Istambul, pagando sua passagem e todas as despesas. Trouxeram o documento original de lá, mas não foi o suficiente. 

Nahalin (à esquerda) e Bettar Illit (à direita)

As ameaças foram constantes. Bulldozers já vieram para demolir tudo e confiscar a terra. Como é área C, sob controle militar israelense, várias estruturas, construídas sem permissões, que raramente são dadas mesmo se solicitadas, foram destruídas: tanques de água, cisternas, etc. Arvores já foram cortadas por colonos como punição (250 certa vez). Na entrada da vila, há um bloqueio de estrada, que impede que ônibus venham diretamente à Tenda das Nações, tendo todos que parar e fazer parte do caminho a pé, atravessando o blocos de pedra no caminho.


"Nos recusamos a ser inimigos."

Ainda assim, nesse local foi criado a "Tenda das Nações", cujo lema é "Nos recusamos a ser inimigos". A ideia não é ver a terra apenas para um povo, mas para todos, pois reconhecem que a terra é uma história de muitos povos. "Nós queremos autossuficiência. Queremos viver da terra", diz Amal, que coordena o projeto junto com os irmãos, "A ideia é criar uma vila de paz".


Lápide do patriarca da família da Tenda das Nações




sábado, 27 de outubro de 2012

Retorno à Cidade Fantasma

Faz um dia que retornei à Cidade Fantasma, Hebron, e estou relembrando de meu períodode três meses aqui. Tudo é tão familiar, embora a sensação de estar aqui seja diferente. Não parece que se passou mais de um ano desde que fui embora, nem de que passei 'apenas' três meses aqui. Para algumas pessoas, um dia em Hebron basta para compreender o que há de mais desumano na ocupação israelense da Cisjordânia. Não foram poucas as pessoas, especialmente sionistas, que mudaram sua percepção de mundo ao visitarem a Cidade Fantasma (não o cenário 'bíblico' criado pelos colonos). Há aqueles que vem por mais tempo e testemunham o cotidiana desse lugar insólito. Nas palavras de Hanna Baraga, ativista das ONGs israelenses Machsom Watch e Yesh Din, "se você acredita que fez algo tão terrível nessa vida e vai para o inferno por isso, passe um mês em Hebron e você terá uma idéia do que lhe aguarda no pós-vida". Pouco mudou na cidade, na dinâmica e nas pessoas. Houve claras mudanças na praça principal antes da cidade antiga (Bab al-Zawiya), onde foi erguida uma fonte e uma torre pequena com relógio. Na cidade antiga, a barreira que separava essa parte da cidade do antigo terminal de ônibus (há muito transformada numa base militar israelense), foi incrementada, sendo agora uma grande chapa de metal, ao invés de uma cerca (uma grade com arame farpado). Ainda há muito o que rever nessa cidade que, embora não tão conhecida quanto Jerusalém, é segundo a tradição o local de onde teria se estabelecido a comunidade que primeiro professou a fé em um único Deus. Hebron pode ser considerada abençoada por ter sido o local de berço adotivo do monoteísmo, mas hoje essa benção parece mais amaldiçoá-la.  

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Gaza à distância


Há uma ano atrás, no dia 16 de agosto de 2011, visitei junto ao Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel o moshav (comunidade cooperativa agrícola) de Netiv HaAsara ao sul do Israel e apenas 400 metros da fronteira com a Faixa de Gaza. Fomos conhecer uma representante da ONG formada por pessoas comuns de Gaza e da região de Sderot chamada Other Voice, que promove a paz entre palestinos e israelenses. Ela nos contou sobre a situação na sua vila e na região de Sderot, sobre os mísseis qassam, as vítimas. Também nos contou sobre a iniciativa de trazer alguns palestinos de Gaza para se reunir com eles em Israel. Conseguiram uma autorização para uma dezena de pessoas atravessar o bloqueio. Dois deles concordaram em aparecer na televisão israelense, o que acabou por trazer perseguição a eles após seu retorno, tendo um deles até deixado a Faixa de Gaza. Foi nos apresentado os vários abrigos, os pontos de ônibus com abrigos, um parquinho infantil com brinquedos que servem como abrigos. Não deixava de estar claro que era uma perspectiva israelense, por mais que se esforçasse por promover uma visão de mútua compreensão e divergir do senso comum israelense. Mas a visita não se limitaria a sua fala.

O moshav de Netiv HaAsara, ao sul de Israel

A experiência mais simbólica dessa visita, entretanto, foi ir até um local alto apenas metros de distância da fronteira com Gaza. Ali podemos vislumbrar o que já foi descrito como "a maior prisão a céu aberto do mundo". Passamos pelo muro que divide a fronteira norte da Faixa de Gaza com o Israel, um muro em quase nada diferente do muro na Cisjordânia, exceto pelo fato de respeitar as fronteiras internacionais e ter torres equipadas com metralhadoras de alto calibre. A maior parte da fronteira é na verdade constituída por cercas eletrificadas e equipadas com câmeras de segurança. A proximidade com o pequeno moshav de Netiv HaAsara justificaria, segundo a visão das autoridades israelenses, a necessidade dos muros para evitar franco-atiradores palestinos atirando contra civis israelenses. Subimos em uma duna, e dali podemos vislumbrar Gaza à distância. Prédios apareceram a uma longa distância do muro, atrás de dunas, mas também da área de exclusão, da qual os palestinos não podem se aproximar. São em tese uma distância de 500 metros da barreira, mas na prática acaba chegando a uma distância de dois quilômetros, áreas onde existem casas, apartamentos, etc. Nessa área de risco, muitas pessoas tem terras, as quais tem dificuldade de cultivar devido ao temor de tiros de metralhadoras israelenses ou mesmo de artilharia de tanques que vigiam a fronteira. 

Muro que separa Israel do norte da Faixa de Gaza

Entretanto, nada disso podia ser claramente percebido. Apenas um conjunto embaralhado de prédios à distância, duas pequenas cidades, Beit Lahiya e Beit Hanun, paradas, sem vida, nenhum ser humano à vista. O zoom da máquina fotográfica podia ao menos aproximar o suficiente para ver as cores dos prédios, o verde das árvores, as janelas das casas e dos prédios. Ainda assim, é uma imagem impessoal, desprovida de qualquer elemento que revele a existência de uma vida cotidiana, humana como qualquer outra. Somando-se as torres de vigilância, o muro, todo o aparato de segurança, não é de se estranhar o estranhamento e falta de empatia dos israelenses da região de Sderot pelos habitantes de Gaza. Claro, a esse fator soma-se os mísseis qassam. Entretanto, isso é desenvolvimento relativamente recente do conflito. A barreira existe desde 1994 e a saída da Faixa de Gaza para seus habitantes é um problema desde 1948. Os mísseis qassam, com toda sensação de temor que causa entre os habitantes do sul de Israel, matou até hoje menos de 25 cidadãos de Israel. Apenas em uma operação na Faixa de Gaza das forças aéreas de Israel no início de 2011, 26 palestinos foram mortos. Isso sem contar a ofensiva inclemente do exército israelense que matou aproximadamente 1.400 pessoas, em sua maioria civis. Desses civis, uma parte significativa eram crianças (as estimativas ficam ao redor de 400).

Norte de Gaza

Ninguém pode perceber daquela duna de areia em Netiv HaAsara, nem de qualquer ponto da fronteira no lado israelense, o sofrimento cotidiano dos palestinos que habitam uma região minúscula, apenas 360 quilômetros quadrados, sob um cerco que já dura aproximadamente cinco anos. Além das dificuldades inerentes a um bloqueio econômico, a Faixa de Gaza possuí uma das maiores densidades populacionais da face da terra. De acordo com o Escritório de Coordenação Assuntos Humanitários da ONU, mais de 90% da água do aqueduto de Gaza é considerado impróprio para o consumo. O desemprego alcança 34% e entre a jovens chega a 50%. Quase metade de todos os habitantes de Gaza sofrem de insegurança alimentar e por volta de 80% recebem ajuda humanitária. Mais de um terço da área agrícola de Gaza tem seu acesso impossibilitado devido ao bloqueio israelense, assim como 85% das águas utilizadas anteriormente para pesca. Apagões costumam ser frequentes e chegam durar 12 horas por dia. Apenas um caminhão de comida sai de Gaza diariamente, 3% da média de exportação na primeira metade de 2007. O produto interno bruto de Gaza em 2011 foi 17% menor do que era em 2005. Desde que o bloqueio foi instaurado, trinta e sete israelense morreram de ataques vindos de Gaza, 40% civis, enquanto aproximadamente 2.300 palestinos morreram ali desde o mesmo período, 27% dos quais mulheres e crianças. Aproximadamente dois terços morreram na já mencionada ofensiva de 20 dias ao final de 2008 e início de 2009.

Gaza atrás do muro

Entretanto, nada numa terra assolada por conflito é simples. Poucos dias depois de ter visitado o sul de Israel, na mesma semana, um ataque terrorista foi realizado na estrada para Eilat, cidade banhada pelo Mar Vermelho. No mesmo dia do ataque, as forças aéreas israelenses atacando o quartel dos supostos perpetradores em Gaza, matando um número semelhante dos que morreram no ataque em Israel. Me lembro das palavras da representante dizendo como se sentia atormentada quando mísseis eram lançados de Gaza e as sirenes tocavam avisando todos ao redor a se refugiarem. Ao final, ela também disse que sentia coração apertar quando via helicópteros e aviões israelenses lançar mísseis em Gaza, temendo que alguém que conhecesse também pudesse ser atingido. Essa segunda descrição não foi tão longa e detalhada quanto a primeira. Mas por mais que haja sofrimentos em ambos os lados, não podemos deturpar os fatos ao ponto de ignorar a enorme desproporção do conflito e dos afetados pelo mesmo. Miko Peled, ativista israelense que perdeu sua sobrinha para um atentado de um homem-bomba, foi ao local onde um míssil qassam havia caído num Jardim de Infância de um kibbutz no sul de Israel. Crianças ficaram em choque, algumas foram feridas, outras poucas hospitalizadas pelo míssil que caiu enquanto elas ali brincavam. O buraco deixado pelo míssil qassam era de o tamanho de uma bola de futebol grande. Nesse momento, Miko pensou no efeito de uma bomba de um tonelada, como as lançadas por Israel nas áreas urbanas densamente povoadas da Faixa de Gaza. Lembrou que a cratera deixada por uma bomba desse poder explosivo é de o tamanho de um quarteirão. Crianças nas proximidades do local de impacto não ficam aranhadas, não em estado de choque, elas são dizimadas, são queimadas, são sufocadas pela fumaça e enterradas pelos escombros. Entretanto, nada disso pode ser visto ou sentido a apenas uma curta distância, do outro lado da barreira que poupa a população israelense do vislumbre dos horrores cometidos em nome de sua segurança.


sexta-feira, 29 de junho de 2012

Palestina, um ano depois




Há exatamente um ano, nesse mesmo dia (29 de junho), eu chegava na Palestina. Não era a primeira vez que visitava aquele país, mas era a primeira em que moraria nele. Não só isso, era também a primeira vez em que moraria fora de meu país, ainda por cima trabalhando com algo que nunca trabalhei diretamente. Por outro lado, a situação não me era estranha, muito pelo contrário, era muito familiar, já que há vários anos estudava o assunto e tinha feito uma viagem anteriormente na qual pude conviver e ser hóspede de famílias palestinas. Fui com muitas expectativas e em muitos sentidos elas foram superadas, em alguns poucos aspectos, ficaram abaixo delas. A experiência foi ao mesmo tempo muito intensa e envolvente, ao ponto de em certa maneira me sentir em casa. A imersão naquela realidade foi tão profunda e tanto a situação, quanto ao trabalho que realizava, tornava todo o universo que me era familiar, toda minha vida anterior, algo estranho, de alguma maneira alheia a mim, como se pertencesse a outro período ou a outra vida. No entanto, não quer dizer que não estivesse ausente de mim, pois eram provavelmente as minhas angústias com essa existência que agora sentia como uma "outra vida" juntamente com os imperativos de minha missão lá dado a situação que tornavam a nova realidade em certo sentido reconfortante. Diante do que via e do que precisava fazer, as dores do passado pareciam em minha consciência como pequenos infortúnios distantes de mim, como se os tivesse vivido em minha infância e considerasse-as hoje tolices, mas não deixaram subconscientemente de existir, por vezes conscientemente, e de me afetar, tanto em minhas ações, quanto em meus sentimentos. Assim, me via quase livre de outras preocupações que não condizessem ou se interrelacionassem com aquela nova vida. Vivi quase num estado de suspensão, por assim dizer, o que tornou o retorno um certo choque, sobretudo, devido a intensidade daquele três meses, daquela dura situação, de uma realidade muito além do que é possível imaginar para aqueles de fora. O retorno não trazia só lembranças, mas vínculo perene com aquela realidade que mesmo estando distante, mesmo não estando fisicamente a meu redor, vivia em mim, como ainda vive de fato com meus amigos e outros tantos palestinos que conheci lá. Havia ao mesmo tempo em mim uma ânsia de contar tudo, mas uma angústia que me levava ao silêncio. Apesar de saber há anos disso, não deixava de ficar pasmo como tantas injustiças podem ser escondidas, mas pior, o maior absurdo talvez seja exatamente a vilificação da vítima, não somente sua culpabilização por seu próprio sofrimento, mas a própria condenação a priori de um povo inteiro como "potencial genocida", como uma ameaça a vida de outro povo, cujo o Estado que os diz representar é de fato o causador direto de um sofrimento generalizado há mais de 60 anos para aquele povo julgado como agressor, mesmo em condições de extrema inferiodade econômica, militar, política, ideológica, etc. Enfim, uma desumanização completa do povo palestino, e vista não só como aceitável, mas como necessária. Diante de tal paradigma, tão presente em nossa mídia, tão bombardeada em nossos cérebros pelos mais diversos meios de comunicação quase diariamente, mas negligenciado pelas pessoas ocupadas em seus afazeres cotidianos, como tornar o que vivi minimamente compreensível aos outros, o que para mim não advinha somente do desejo de compartilhar, mas era (e é ainda) um imperativo. Mas como fazê-los entender? Mais ainda, como expôr compreensivelmente essa situação a tantos que sequer se interessarem minimamente por ela? E como fazer aqueles que mais precisam saber disso livrarem-se de seus enraizados preconceitos?

Vista para o antigo mercado de carne de Hebron, o qual os palestinos estão proibidos de acessar desde 1994 e que foi parcialmente demolido pelos colonos do assentamento de Avraham Avinu

A experiência de viver na Palestina como um acompanhante ecumênico é, pode-se dizer, como uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo, você conhece lugares incríveis; pessoas maravilhosas, fantáticas e admiráveis; ganha experiência tanto profissional quanto de vida; desenvolve antigas habilidades e adquire novas; etc. Por outro lado, a dura realidade da Palestina não é facilmente digerível, mesmo para os mais acostumados. Às vezes, pode haver um certo distanciamento, uma sensação de imunidade, como você estivesse apenas presenciando (ou até assistindo como num documentário) algo do qual você sabe não sofrerá. Mas o cursos das coisas nessa terra castigada pelo homem não tarda a mudar essa percepção. Cedo ou tarde, ela alcança a grande maioria diretamente ou indiretamente. Pode ser uma agressão testemunhada ou sofrida, uma humilhação aviltante vista ou vivida, de qualquer modo, vive-se não só pelas palavras dos palestinos os sofrimentos e angústias pelas quais esses passam e sentem, mas na própria pele, ainda que incontavelmente diluída e por mais incomparável que pareça a equivalência racionalmente. Não há como ficar totalemnte apático perante tamanhas injustiças cometidas em frente aos nossos olhos caso se possua o mínimo de empatia com a dor de outro ser humano. Vê-se coisas para qual a descrição exije um esforço de contextualizar um absurdo dentro de um absurdo maior, que torna anedotal o fato mostrado por si só. Haver uma razão para certas coisas é às vezes o que a torna mais insólita na Palestina. Demolições de casas e outras construções, não são apenas demolições injustas e quase sem propóstio a primeira vista. É evidente que muitas vezes o Estado de Israel gasta muito mais em logística (combustível, pessoal, "segurança") para demolir uma tenda de um beduíno no meio do deserto, do que esse gastou para construí-la (em termos totais, não proporcionais, é claro). O que explica tal aparente incoerência e a estratégia maior de controle sobre um território, de limpeza étnica de uma população em nome de um princípio etnocêntrico de Estado, uma verdadeira etnocracia. Para aquele que observa isso conhecendo e vivendo o contexto maior, há uma dificuldade enorme no simples relato de uma experiência pontual como essa. E há algo ainda pior, muitas tornam-se de certa forma banais. Os absurdos começam ganhar uma escala, e pouco se impressiona com algumas injustiças do cotidiano enquanto tem-se que vivê-las e registrá-las o tempo todo. Um posto de controle no meio do nada, sem água, sem banheiros e sem locais para abrigar os trabalhadores que esperam em filas enormes para ir a Israel ou mesmo a Jerusalém oriental (segundo a lei internacional, parte integral de um futuro Estado Palestino e sua capital), deixa de ter o mesmo impacto ao observador a medida que vê-se outros tantas injustiças com o passar dos dias, como pessoas desesperadas a se esmagarem para atravessar o posto de controle e chegar a tempo em Israel para não perder o dia de trabalho; a serem humilhadas e tratas como seres desumanos pelos soldados ou seguranças privados que cuidam da segurança e do "processamento" da travessia, entre outras coisas. Acontece, como com os palestinos, que acaba-se por se disciplinar-se perante os fatos, como é a estratégia padrão da ocupação israelense. Entretanto, a inconformidade não desaparece, nem deixa de estar presente subconscientemente. Ela fica num estado de suspensão como um modo de conter a indignação perante esses fatos para que se possa realizar um trabalho maior. Esse autocontrole, por outro lado, é esforço tremendamente maior para quem o viveu durante toda sua vida, para quem sofre humilhações cotidianas desde a tenra infância, sobretudo para jovens alijados de seus sonhos e tendo que perdurar sem esperança. Não há para esses quase nenhum refúgio, tendo ainda por cima que lidar com brutal repressão a qualquer expressão de sua raiva, por menor que seja. O conjunto dessa opressão é o fermento para as agressões mais violentas que se conhece da resistência palestina, como o homem-bomba, que são também as mais conhecidas e divulgadas pela mídia, mas raríssimamente o que as origninam. Há 45 anos Israel ocupa os territórios da Cisjordânia e Faixa de Gaza, mas essa estratégia que veio a "caracterizar o conflito" segundo a mídia ocidental não tem sequer 20 anos e ceifou durante esse tempo menos vida do que as bombas lançadas pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) apenas em Gaza no início de 2009.


Casa de um palestino demolida por estar numa área próxima a um assentamento (Kiryat Arba, ao fundo)

De minha experiência pessoal, é difícil enumerar as injutiças das quais presenciei ou ouvi relatos de primeirma mão. É difícil para qualquer um mesmo que passe apenas uma semana na Cisjordânia. Não testemunhei algumas das mais brutais, como assassinatos seletivos (que hoje ocorrem mais em Gaza), nem demolições de casa. As últimas aconteceram enquanto estive lá, mas pude ver apenas os vestígios, quando muito. Frequentemente, ocorrem demolições na madrugada, para impedir qualquer registro, quando o exército não barra o acesso para o local. Ao passar pelos escombros várias casas e construções demolidas em várias cidades e vilas da Palestina, surgia em mim uma vontade um tanto sádica de querer ter assistido a esses eventos, de ver essas demolições, de experienciá-las, como com outras tantas injustiças. Por mais insólito que isso pareça, há uma racionalidade fria em presenciar tudo isso e registrar em primeira mão. Poder mostrar em imagens ou poder descrever em detalhes toda e cada injustiça torna-se um imperativo, algo que é desprazero de fazer, mas instrumentaliza aquele que quer divulgá-la, já que dificilmente pode fazer alguma coisa in loco para modificá-la ou, ainda mais difícil, impedí-la. Esse sentimento de impontência torna a presença e a observação algo de alguma forma reconfortante, mesmo que um tanto ilusoriamente. Como é uma das únicas coisas que se pode fazer, especialmente no meu caso, como imagino de outros, acaba-se por buscar incessantemente essas evidências, que por si mesmas trazem um risco, tanto psicológico, quanto por vezes físico. Embora o físico seja um tanto mais incomum para observadores internacionais, o psicológico não é. De alguma maneira, a superexposição pode às vezes ser danosa para os objetivos, tornando dificilmente separar emoções do puro e simples testemunho frio. Afinal, quando, por exemplo, crianças que você vê diramente ou mesmo conhece são humilhadas ou agredidas, o vínculo emocional com o fato pode tornar-se uma fraqueza a ser explorada pela cínica estratégia de argumentação reproduzida quase da mesma forma por todo um exército de apologistas de Israel: "Afinal, não são meramente crianças, são potenciais terroristas, alimentados por propaganda e ódio antissemita desde sua infância". Dessa forma, o agressor não só justifica seus atos, mas ele se torna a potencial vítima que agiu em legítima defesa, não só isso, estava fazendo a justiça de um crime que não aconteceu, mas que poderia potencialmente acontecer. O racismo implícito nessa argumentação consegue ser passar sem ser notado pela maior parte do público já indoutrinado em islamofobia pela grande mídia. A naturalização de um crime contra qualquer outro grupo leva frequemente a acusação de racismo, menos nesses casos, onde ainda por cima é o racista e agressor que se vê ao mesmo tempo como vítima de agressão e racismo. Defender a igualdade de todos seres humanos e seus direitos é uma coisa, outra é defender um conhecido desumanizado dessa forma, descaracterizado e deturpado por um estereótipo que se aplica a ele independente de suas ações e pensamentos. Não importa que ele seja um pacifista, não importa que ele nunca tenha pego em uma arma, importa menos ainda que ele jamais tenha recebido essa fantasiosa educação do "ódio" (contra judeus, mais especificamente) que nunca testemunhei por mais dezenas de crianças que conhecesse na Cisjordânia; nada disso importa, a questão é que ele é um palestino antes de tudo, e "palestinos são terroristas".

Soldado israelense aponta sua arma para um menino palestino em Hebron


Sair de uma realidade na qual se testemunha cotidianamente essas injustiças, para uma na qual elas são justificadas peremptoriamente ao mesmo tempo que são ignoradas, quando não desconhecidas, é no mínimo angustiamente, ainda mais considerando a intensidade da experiência lá e o vínculo que se manteve com ela. Para mim, o fato de logo que sair, ainda na época do dia das crianças, foi especialmente duro ter de testemunhar à distância a agressão  por soldados israelenses dos alunos da escola Córdoba, os quais acompanhava diariamente, quando houve um protesto contra a obrigatoriedade dos professores dessa escola de serem escaneados diariamente em detectores de metal ao entrar na área de controle israelense. Especialmente problemático foi o retorno a vida de antes e as preocupações que tinha deixado de lado em conjunto com as novas angústias. Houve nos primeiros momentos quase uma espécie de negação do retorno, como se contuasse lá, embora em corpo aqui. Pouca preocupação foi dada ao que havia "ficado em suspensão" inicialmente, pois em minha mente continuavam "em suspensão". Queria que continuasse pois manifestava abertamente o desejo do voltar, por mais difícil e até contraproducente que fosse. A mídia social permitiu a manutenção desse vínculo, ao mesmo tempo facilitando e dificultando o afastamento, o retorno a vida anterior. Por um lado, podia as pessoas não estavam totalmente separadas, de modo que a angústia causada pelo distanciamento se atenuava. Por outro, os laços com uma realidade em tribulação fazia com que ainda sentisse a indignação perante essas injustiças sem poder ter o reconforto de registro e/ou da presença protetiva,  um dos pilares centrais do Programa Ecumênico de Acompanhamento na Palestina e Israel. Mas o tempo passou, os afazeres cotidianos foram ganhando prioridade e aquela vivência por três meses na Palestina e em Israel tornou-se passado, por mais presente que fossem as lembranças. Ao mesmo tempo senti que passei um significativo período de minha vida lá e que o tempo passou muito rápido. A sensação é de que vivi anos lá, mas ao mesmo tempo tudo passou tão rápido. As lembranças se assemelham as das cidades que morei por vários anos há um bom tempo atrás. De fato, em termos de experiência, foi quase tanto em três meses do que durante vários anos de minha vida em alguns lugares. Talvez seja a profundidade e a dimensão dessa experiência que traga essa sensação estranha em relação ao curto período passado lá, que ao mesmo tempo parece tão longo por tantas coisas acontecerem, por tantas coisas serem conhecidas. Esse é o impacto da vivência como um observador e acompanhante estrangeiro na Palestina por três meses: a de uma realidade tão complexa e tão estupefante que ocupa em termos de significância uma boa parte de nossa vida por mais curto que seja o tempo.






sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Dia da Rua dos Mártires



Há 18 anos atrás, no dia 25 de fevereiro de 1994, um colono israelense nascido nos EUA, o médico Baruch Goldstein, entrou na Mesquita Ibrahimi (o Santuário do Patriarca Abrãao) em Hebron (al-Khalil em árabe) e atirou contra os muçulmanos em oração. Era ao mesmo tempo sexta-feira de Ramadã (mês sagrado do Islã) e Purim (dia sagrado para os judeus). Enquanto o Ramadã é um mês de jejum diurno e oração, o Purim é uma comemoração do malogro de um suposto plano para exterminar o povo judeu durante o Império Persa (não existe qualquer evidência histórica que corrobore com a narrativa dessa tradição). Baruch Goldstein adentrou a Mesquita Ibrahimi armado com sua metralhadora durante o sermão de sexta-feira (a khutba), passando sem ser detido pelos vários soldados israelenses presentes, encarregados de manter a ordem e segurança no Santuário dos Patriarcas. Ele estava com seu uniforme de soldado, mas sendo um homem de meia idade, seria ainda mais estranho ver qualquer um assim do que os típicos colonos de kippah e barba armados com metralhadoras (uma cena comum até hoje). Como pode-se se deduzir, sendo a mesquita o quarto local mais sagrado para o Islã e sendo uma sexta-feira de Ramadã, ela estava lotada com devotos em oração no momento que Baruch a adentrou e atirou contra os mesmo. Vinte e nove palestinos foram mortos e cento e vinte cinco ficaram feridos, alguns com sequelas permanentes, como paraplegia. Baruch Goldstein morreu ali mesmo, sobrepujado e linchado até a morte pela multidão que estava algomerada na mesquita.


Santuário dos Patriarcas (Mesquita Ibrahimi), local do massacre de Baruch Goldstein no dia 25 de fevereiro de 1994


O que se seguiu a esse massacre é o que o torno ainda tão simbólico e por que a memória desse acontecimento ainda é tão presente: a decisão do governo israelense de isolar áreas da cidade para proteger os colonos de qualquer retaliação por parte de palestinos. Desse modo, a colônia urbana estabelecida em quatro pontos (assentamentos) na cidade antiga de Hebron e em seus arredores pudesse manter sua existência "normal". Assim, a rua Shuhada (rua dos mártires, em homenagem aos mortos no massacre) teve seu acesso parcialmente restrito para palestinos, que não poderiam dirigir ou abrir suas lojas nessa rua e em outras ruas e áreas próximas aos assentamentos. Entre 600 a 800 lojas de palestinos foram fechadas sob ordem militar, a maioria seladas com barras de metal soldadas sobre as portas. Era ainda possível caminhar por essa rua, que era a principal artéria do centro histórico da cidade. Isso durou até o ano de 2000, quando a segunda intifada irrompeu e a violência contra civis em ambos os lados foi levando a uma escalada da brutalidade no conflito. Para mais uma vez proteger os colonos de qualquer retaliação, o exército israelense bloqueou mesmo o acesso a pedestres na rua Shuhada e submeteu a população palestina na área sob controle israelense* a constantes toques de recolher que chegavam a durar semanas inteiras e se somados, quase uma ano. O conturbado e violento período da segunda intifada já passou, entretanto, permanecem as restrições para população palestina e a rua Shuhada continua fechada a essa população.


Posto de controle israelense na entrada da rua Shuhada
Apesar das restrições e das agruras com que tem que lidar cotidianamente, palestinos de Hebron tem se erguido em protesto e se organizado pacificamente para conseguir acabar com as restrições as quais os palestinos estão submetidos em Hebron e lutar pelo fim da ocupação. Um grupo em especial, a Juventude contra Assentamentos, tem encabeçado a campanha "Abram a Rua Shuhada" (Open Shuhada Street). Hoje, dia 25 de Fevereiro, marca ao mesmo tempo o aniversário do massacre que deu início a essas restrições e também o dia de protesto para abertura dessa rua cuja a obstrução permanece não só como uma ferida aberta da violência da ocupação, mas também uma agonia constante para os habitantes da área sob controle militar israelense, que sofrem de abusos quase diários por parte tanto de soldados e quanto de colonos. Como não fosse o bastante, esses últimos ainda mantém seus ideais supremacistas e genocidas que inspiram Goldstein a cometer o massacre em 1994. Pela rua Shuhada e arredores pode se ler por todo canto escrito em Hebraico "Morte aos árabes" e afins. Entretanto, esses colonos jamais são processados ou presos por incitação ao ódio, pelos constantes abusos contra palestinos e pelos danos ou furtos de propriedades palestinas. Ainda assim, a maioria dos habitantes palestinos dessa área continua resistindo pacificamente através da perseverância e da própria existência no local onde são indesejados. Talvez por isso os protestos pacíficos sejam aos olhos das autoridades uma audácia inaceitável, algo que se soma ao desafio constante as mesmas pela mera continuidade de sua existência. Os protestos desse ano foram reprimidos como tipicamente, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e detenções/prisões arbitrárias. Porém o espírito de resistência do povo palestino, que já sustentou expulsão, dispersão e ocupação por mais de sessenta anos, não consegue ser assim suprimido. Como a oliveira que resiste as intempéries dessa árida região mesmo por milênios, os palestinos suportam as intempéries da ocupação, regenerando seus galhos e folhas perdidas a cada primavera, esforçando-se, em cada protesto, para alcançar o sol que os ilumina e os alimenta com a esperança de liberdade num futuro próximo.


Protesto pela abertura da Rua Shuhada
* Por conta da presença de colonos em seu centro, a cidade de Hebron/al-Khalil foi dividida em duas áreas durante o processo de Oslo, que gerou a Autoridade Nacional Palestina. Uma dessas áreas (a área H1, 90% da cidade), estaria sob controle da Autoridade Palestina, enquanto o centro histórico e seus arredores permaneceriam sob controle militar israelense (a área H2, mas que incluí a Casbah (cidade antiga de pedra) e o Santuário dos Patriarcas, assim como toda a área que conecta os assentamentos urbanos aos assentamentos maiores e em forma de condomônio fechado de Kiryat Arba, Givat Ha'avot e Givat Harsina.