sábado, 22 de outubro de 2011

Uma história hebronita

 Passado um mês em que conclui meu último dia em Hebron, resolvi contar uma história pessoal em primeira pessoa. Anteriormente, em nenhum momento nesse blog, utilizei a primeira pessoa, preferindo dar relatos impessoais de uma situação mais abrangente, escrevendo muito mais sobre números, estatísticas e dados sem nenhuma face. Tinha a intenção de descrever a situação como um todo, o contexto de todas as inúmeras tragédias individuais. Não queria fazer desse blog uma coleção de anedotas. Entretanto, tive que me render ao fato de que sempre a nossa vida, constituída por experiências pessoais, tende a trazer muito mais a marca dessas experiências, do que dados abstratos. Obviamente, por mais que tenhamos como valor a vida humana de modo geral, não criamos verdadeiros laços sentimentais e emocionais com números abstratos e estatísticas, pois afinal de conta, somos todos indivíduos, não seres oniscientes. Talvez de modo cínico como na frase de Stalin "uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística", mas também de outro modo, reconhecendo a realidade humana limitada, que inevitavelmente cria conexões, preferências. No alvorecer da humanidade, o horizonte de cada ser humano estava limitado a comunidade a seu redor, da qual poderia ter laços pessoais com todos seus membros. Assim o é de modo geral com as comunidades humanas isoladas de hoje. O que apenas difere esses grupos das sociedades modernas é a consciência de uma humanidade mais ampla, de uma realidade muito mais além da experiência pessoal, da qual sabemos, mas não a vivemos totalmente. Portanto, nossas emoções e sentimentos, por mais que se identifique com realidades maiores e distantes, permanecem ancoradas num existência individual, ainda que virtual. Tudo depende de como incorporamos seletivamente o mundo a nossa volta ao nosso ser. Atrela-se mais facilmente ao ser aquilo ao qual os laços são mais profundos, constituídos por uma vivência. A experiência pessoal, entretanto, é algo com capacidade de sintetizar todos esses elementos, conscientes e inconscientes, racionais e emocionais. Ela tem o poder de uma só vez tornar-se parte do nosso ser. É a contingência, esse ininterrupto e sempre singular acontecer, que constituí a unicidade de cada uma de nossas vidas. Desse modo, relato abaixo algo que fez parte da minha.

O antigo mercado (souq) de Hebron

 Era um domingo, dia 24 de Julho, e meu grupo estava planejando visitar uma família que vive na Casbah, o centro histórico de Hebron, em frente ao assentamento de Avraham Avinu e que por isso sofre abusos tanto de colonos quanto dos soldados que os protegem. Quando estavamos para sair, recebemos um telefonema, dizendo que havia soldados na Casbah, isolando uma rua e impedindo a passagem aos transeuntes. Saímos então com certa pressa e pouco tempo depois chegamos ao local, talvez vinte ou no máximo trinta minutos após tudo ter começado. Passamos pela praça em frente à Bab al-Baladia, que fica em frente ao assentamento de Beit Romano e seguimos para dentro, pela rua al-Haram (rua do Santuário). Há uma pequena praça nessa rua e ao lado esquerdo de que vem em direção a Mesquita Ibrahim (o Santuário dos Patriarcas) e então vimos um pequeno aglomerado voltados para uma estreita rua que sobe para a área residência da Casbah. Ali encontramos observando quatro soldados israelenses que estavam bloqueando o caminho alguns membros da TIPH (Temporary International Presence in Hebron), uma presença internacional de status diplomático criada pelos tratados de Oslo para monitorar a situação dessa cidade. Fomos informados por eles que por volta de quinze soldados israelenses ali tinham chegado aproximadamente meia hora antes. Apenas quatro estavam barrando a passagem por aquela rua, estando os outros dentro da casa, revistando os cômodos, provavelmente.

Crianças palestinas sendo impedidas de passar pelos soldados israelenses que bloqueavam a rua

 Ao ver que toda movimentação por aquela estava sendo barrada pelos soldados ali presentes, mesmo para mulheres e crianças, resolvi dar a volta e checar o outro lado. Para fazer toda a volta era necessário voltar para entrada do souq, vários metros atrás, ou seguir até encontrar outro acesso a área residencial da Casabah. Após encontrar um desses acessos, tive que passar por vários caminhos labirínticos. Demorei alguns minutos para encontrar o outro lado da rua que havia visto estar interditada. Ao chegar ao outro lado vi apenas um soldado bloqueando o caminho, poucos metros adiante onde estavam os outros quatro soldados. Voltei então, para onde estavam o maior número de soldados, dispensando meus outros colegas para visitar a família que o aguardava não muito longe dali. Poucos minutos depois, vários soldados saíram da casa e rumaram para dentro da área residencial. Eram pelo menos dez, sendo que um carregava uma escada de aço dobrável nas costas. Ao total, eram quinze soldados subindo aquela rua estreita. Eu os acompanhei juntamente com alguns membros da TIPH. Após subir um pouco, onde havia uma bifurcação, vi os soldados voltando pela mesma rua em que pouco tempo atrás havia subido. Dessa vez pude ver dois homens palestinos sendo levados por eles, mas sem estar algemados ou vendados, como é de costume. 

Soldados israelenses levando um dos dois homens palestinos com eles, enquanto membros da TIPH os observam

 Os soldados apressaram o passo descendo aquela rua e seguindo para dentro do souq, virando na direção da entrada da Casbah. Atravessaram o souq caminhando em fila rapidamente, sem muitos problemas, já que naquele domingo não havia quase movimento na rua al-Haram, embora domingo seja o início dos dias úteis da semana para muçulmanos e judeus. Segui os soldados a certa distância por todo caminho de volta para Bab al-Baladia, literalmente a "porta da cidade", por onde os soldados costumam a adentrar a Casbah em grande número e para onde costumam levar palestinos detidos antes de serem levados a delegacia israelense local (no assentamento de Givat Ha'avot) ou para alguma prisão. Nesse local estão localizadas o assentamento de Beit Romano, a yeshiva (escola religiosa) dos colonos e uma rua que dá acesso a rua Shuhada, na qual os palestinos estão proibidos de andar desde do ano de 2000. Por ser uma rua de acesso a rua Shuhada e também uma rua que passa em frente a Beit Romano, uma cancela fecha o acesso veicular e um portão o acesso a pedestres. Uma pequena torre adjacente ao portão serve de ponto de vigília dos soldados. Além dessa torre, em frente ao assentamento, acima de algumas lojas de palestinos que estão fechadas por ordem militar de Israel, há um dos vários postos militares israelenses na cidade. Chegando ali, os soldados fizeram como usualmente fazem e passaram pela lateral da cancela e abriram o portão atrás dela. Na rua atrás da portão, algemaram os dois homens e vedaram seus olhos.

Um dos dois homens palestinos sendo vedado

 Voltei, então, para o local onde tudo havia começado e comecei a perguntar aos vendedores locais quem eram as duas pessoas que os soldados haviam levado. Disseram-me o nome completo dos dois indivíduos e desse pai, um homem de meia-idade que possui uma barraquinha de sucos ali perto, onde serve sucos frescos de laranja, cenoura e romã. Decidi ir para junto de meus colegas que ainda estavam fazendo uma visita a família que vive em frente ao assentamento de Avraham Avinu. Estava com eles um dos contatos locais que estava traduzindo para eles. Terminando a visita, chamei meus colegas e o contato local, que nos ajudaria na comunicação, para ir conversar com a família que teve a casa adentrada pelos soldados. Chegamos até lá e conversamos com o pai daqueles dois homens que vi serem algemados e vedados, que nos convidou para entrar. Ele estava pasmo, sem saber o que tinha acontecido. Disse-nos que, inicialmente, viu os soldados passarem em sua frente enquanto estava em sua barraca de sucos, mas não imaginava que iria, para sua casa. Quando percebeu que isso era o que tinha acontecido, foi para sua casa, mas foi proibido de adentrá-la pelos soldados, que também pediram para verificar sua identidade e o revistaram.


O vendedor de sucos sendo revistado após ser impedido de voltar para sua casa, onde os soldados haviam entrado

 Sem ser informado do que estava acontecendo, o senhor de meia-idade esperou até que os soldados saíssem, para sua surpresa, com seus dois filhos. Quando adentrou sua casa, foi logo checar os cômodos de seus filhos e netos, que haviam sido revirados pelos soldados. Não foi dada nenhuma explicação para ele ou para os outros membros da casa a razão de tudo aquilo. Apenas entraram sem pedir licença, revistaram aquele cômodo por uma hora e saírem levando os homens adultos daquela casa, um dos quais residia no quarto revistado com sua mulher e filhos. Perguntamos se por acaso algo parecido havia acontecido antes ou se seus filhos pertenciam a algum partido (o que quer dizer, a algum partido banido, como o Hamas). O senhor respondeu que nenhum dos seus filhos pertencia a algum partido político e que não tinha idéia do porque que eles estariam sendo procurados pelos soldados. Adentrei o modesto cômodo e vi a maioria das gavetas semi-abertas, objetos espalhados pelo chão, muitos outros jogados em cima da cama, colchões e tapetes revirados e amontoados em um pequeno espaço. Não havia visto os soldados carregarem ou levaram nada diferente em suas mãos, e não nos foi informado se algo havia sido levado após a prolongada revista.   

Cama sobre a qual os soldados haviam jogados alguns objetos durante a revista

 Então, para surpresa de todos, os dois filhos do senhor com que conversávamos retornaram a casa em menos de uma hora. Finalmente, pudemos esclarecer o que havia ocorrido. Prontamente lhes foi perguntado o motivo de tudo aquilo. Responderam que haviam sido levados para prestar alguns depoimentos na delegacia de Givat Ha'avot, devido a um "incidente" que havia acontecido no dia anterior. Explicaram-nos que naquele dia (um sábado), como de costume, os colonos israelenses de Hebron fizeram seu tour de uma hora pela Casbah, seguindo por dentro da área residencial, onde circula pouca gente, normalmente apenas os residentes locais. Passaram aquela vez pela rua abaixo de sua casa, ou seja, a mesma que estava sendo bloqueada pelos soldados que os levaram e onde está a entrada para aquela casa. O motivo pelo qual haviam tido sua casa revistada e sido levados para interrogamento, era que, enquanto os colonos e soldados passavam por debaixo da casa durante o tour, algumas coisas pequeninhas caíram (ou foram atiradas) sobre eles. Tratava-se de sementes de frutas que as crianças, filhas de um dos palestinos detido, comiam na janela voltada para rua, enquanto o tour passava abaixo. Em resumo, a razão de 15 soldados terem de fato invadido uma casa sem nenhum aviso e bloqueado uma rua por uma hora, levando dois palestinos adultos para interrogatório, algemando-os e vendando-os para isso, era que crianças deixaram cair sementes em soldados e colonos. Agradecido por tudo aquilo, o pai daquela infortunada família nos levou a sua barraquinha e serviu gratuitamente para mim e para meus colegas sucos de frutas fresco, para retribuir a atenção que tínhamos dado-lhe. Surpreendi-me ao encontrar tanta generosidade de alguém que tinha acabado de passar por tal situação. O olhar doce e o sorriso daquele simples vendedor de suco jamais sairão da minha memória, pois neles vi humanidade mesmo diante das mais insólitas e inaceitáveis situações.


A rua al-Haram, na cidade antiga de Hebron